Como romper com as lealdades ocultas (para usar um termo do psiquiatra Ivan Boszormenyi-Nagy) ou com o amor cego (nas palavras de Hellinger), que nos fazem repetir, desde crianças, padrões de sofrimento ou que nos impedem de explorar as nossas potencialidades? É possível reescrevermos a própria história?

O premiado livro “Um homem no sótão” (ed. Ática), escrito e ilustrado por Ricardo Azevedo, pode ajudar a criança a introjetar essa possibilidade desde cedo. Nele, um autor de livros para criança passa alguns apuros ao escrever histórias em que usa estereótipos para descrever seus personagens:

“Nas águas de uma lagoa, três patinhos amarelos brincavam e mergulhavam. Não sabiam os pobrezinhos que por perto morava uma raposa desalmada que só tinha dois sonhos na vida: chupar ovos de galinha e caçar patinhos amarelos.”

Lealdades ocultas

O problema começa quando os patinhos e a raposa saltam da cabeça do autor, questionando o julgamento dele sobre ser bom e mau. A raposa se defende, alegando que não é má, mas apenas carnívora. Os patos ajudam a defendê-la, dizendo que eles também comem minhocas, peixes e besouros.

Confuso, o autor desiste dessa história, mas tenta escrever outra e mais outras. Em todas elas, porém, os personagens se revoltam: não querem seguir repetindo os padrões que são atribuídos a eles.

Rompendo com as lealdades ocultas

Em determinado momento, o autor acha que basta inverter as qualidades para a história dar certo. Por exemplo, chama de “boa” uma bruxa terrível e malcheirosa. Tanto a bruxa quanto os anões perseguidos por ela ficam indignados. Ela, por ter sua fama de má comprometida; eles, por se sentirem vítimas da feiticeira.

Nesse momento, o autor entra em crise. Precisa abrir mão do que conhece e se lançar ao novo, àquilo que ele mesmo observa da vida e pode criar com ela.

lealdades ocultas desde criança

“Esse nosso autor de histórias infantis está em apuros. Personagens de contos de fadas invadem, furiosos, sua vida e exigem mudanças nos papéis que representam há centenas de anos. Que sufoco! Isso vai deixar tudo de ponta cabeça, aliás de trás pra frente…”

Com humor, o livro prende a criança da última página à primeira (a numeração começa do fim, sugerindo que o processo de autodescoberta e criação é circular, não linear, na vida, um eterno recomeço).

O sentimento do autor talvez não seja muito diferente daquele que nós mesmos temos ao perceber que estamos vivendo segundo um padrão familiar, e não segundo nossa própria natureza e destino. Romper é difícil, descobrir-se angustia, mas o esforço é compensador.

Por Adriana Bernardino.