A vida tem-nos ensinado sobre a morte desde que nascemos: findam-se a vida intrauterina, a infância, a juventude. Os amores. Morremos para o que éramos antes dos filhos, para um casamento que não deu certo, uma amizade… Entretanto não somos bons alunos, ao menos no Ocidente. Tida como a “única certeza da vida”, a morte é negada como se ela não pertencesse à experiência humana.
Para Olgária Matos, professora do departamento de Filosofia da Universidade de São Paulo, os valores da sociedade de consumo são antagônicos à ideia de morte. Afinal, aprendemos que o melhor da vida é a eterna juventude e a acumulação de bens materiais. Onde cabem a morte e seus símbolos nesse contexto?
Não faz muito tempo, tínhamos uma convivência mais próxima com a morte. Era costume, por exemplo, os doentes e os velhos morrerem em casa, sob os olhares de quem os amou, inclusive das crianças (hoje “poupadas” de saber sobre a existência da morte). Cheiros, vozes, toques calorosos as acompanhavam até o último suspiro, e o velório era realizado na sala da casa do morto, com cânticos e orações. Morrer era íntimo, e os rituais funerários ajudavam os enlutados a assimilar a perda.
De meados do século passado para cá, no Brasil, tem-se tornado cada vez mais comum morrer na impessoalidade dos hospitais, muitas vezes sozinho. A morte, escondida entre quatro paredes, segue apartada, excluída como se, dessa forma, pudéssemos evitá-la. Fracassamos não só nesse intuito, mas também em viver plenamente.
“Primavera, Verão, Outono, Inverno e… Primavera”
Quando damos um lugar à morte em nossas conversas e reflexões, podemos, segundo a equipe do Laboratório de Estudos sobre a Morte da USP (LEM), transformá-la de temida em nossa aliada. Temos mais força, por exemplo, para finalizar tarefas e expressar nossos sentimentos às pessoas que amamos. Quando evitamos um contato saudável com a morte, negamos, paradoxalmente, a própria vida, afinal aquilo que não pode mudar já está morto.
“Primavera, Verão, Outono, Inverno e… Primavera” (foto) é o título do filme dirigido pelo aclamado cineasta sul-coreano Kim Ki-duk. Entre muitas possibilidades, ele nos faz refletir – a partir da passagem das estações do ano e das fases do desenvolvimento humano – sobre a impermanência e o desapego. Suas personagens não têm nome, são um com o todo, fluindo junto. (E nós, o que somos? Nosso nome? Nossa profissão?)
O filme é um mergulho radical na ideia de impermanência, que também Freud já havia abordado em “Sobre a transitoriedade”, texto escrito em resposta a um amigo poeta, angustiado com a finitude.
A visão de Freud
“Perturbava-o o pensamento de que toda aquela beleza estava fadada à extinção, de que desapareceria quando sobreviesse o inverno, como toda a beleza humana (…). Tudo aquilo que, em outra circunstância, ele teria amado e admirado, pareceu-lhe despojado de seu valor por estar fadado à transitoriedade”, diz Freud.
Para o pai da psicanálise, entretanto, só o que é impermanente pode elevar o valor do que vivemos: “O valor da transitoriedade é o valor da escassez no tempo. A limitação da possibilidade de uma fruição eleva o valor dessa fruição. (…) A beleza da forma e da face humana desaparece para sempre no decorrer de nossas próprias vidas; sua evanescência, porém, apenas lhes empresta renovado encanto. Uma flor que dura apenas uma noite nem por isso nos parece menos bela.” (grifo nosso)
Essa consciência, porém, não significa evitar a dor da perda ou sentir menos. Como a morte, o luto também faz parte e devemos vivê-lo verdadeiramente, em todas as suas etapas. Para Freud, é só pela realização do luto por alguém ou algo que nos foi muito importante é que podemos nos abrir para o novo.
O que acontece quando aceitamos a morte? Em um primeiro momento, vivenciamos a dor da perda, que pode ser devastadora. Então, precisaremos elaborar a dor. Para isso, é fundamental que possamos expressar nossos sentimentos. Especialistas nesse tema observam que tentar evitar a dor pode fazer com que o luto se prolongue e aumentar o risco do aparecimento de sintomas.
O que permanece com a morte?
Para Bert Hellinger, o criador das constelações familiares, permanece “o pertencimento”. Todos os membros, geração após geração, continuam pertencendo ao seu sistema familiar. Mais do que isso: como a fonte de um rio, é através deles que chegam até nós a força e tudo o mais que precisamos para seguir nosso próprio destino, para fazer um pouco mais com o que recebemos. Ao menos, segundo Hellinger, é isso que nossos mortos esperam. Que nós os honremos em nossa felicidade.
Como fazer isso? Bom, esse é o tema de nosso próximo artigo. Até lá!
Por enquanto, podemos fechar os olhos e dizer para a nossa morte: você também faz parte.
Por Adriana Bernardino.
Texto sensacional! Muita sensibilidade destrinchando um tema que tornou-se um verdadeiro fantasma na humanidade! Difícil aceitar a morte e, talvez, mais complicado ainda é viver o luto… Artigos assim nos fazem refletir. Jornalismo bem aplicado com adendo filosófico extra. Parabéns!
É verdade, a sociedade de consumo nos faz acreditar que a morte não existe, e esse pensamento nos mantem longe da realidade que logo nos bate na cara. Esse afastamento traze uma dor interminavel quando a morte de alguem querido nos toca, impedindo nos viver o luto. E a angustia da nossa propia morte atrapalha nossa vida. É preciso um cambio de abordagem do tema, desde crianças, para assim sentirla como parte da vida e não como um castigo.
Asumir a transitoriedade da vida e a impermanência das coisas faria muito mas facil nossa vida.
Texto excelente. Não fomos preparados infelizmente. Super recomendo a leitura de um livro ” A morte é um dia que vale a pena viver, de Ana Paula Quintana Arantes. Eu, após muito sofrimento com a partida precoce de minha irmã mais nova e jovem ainda, decidi que iria estudar, fazer terapia para assimilar e lidar melhor com o assunto. E confesso que estou vendo com outros olhos hoje.