Uma semente faz o seu melhor quando chega o momento de dar continuidade à sua espécie, independentemente de qual tenha sido o destino da flor, fruta etc. que a abrigava: se arrancada, comida pelas formigas ou muito bem cuidada por um amante de plantas. Apenas leva a vida adiante.

Já nós, humanos, “reféns” da consciência sistêmica, que pode nos manter leais aos padrões da família, complicamos um pouco. Metaforicamente, se fôssemos sementes de uma flor pisoteada, talvez disséssemos a ela: “por amor a você, eu também terei um destino difícil”. E temos.

Em O Amor do Espírito” (ed. Atman), Bert Hellinger faz referência ao conto “Mas à noite os ratos dormem”, do dramaturgo alemão Wolfgang Borchert, para explicar essa dinâmica. No conto, o menino Jürgen vela noite e dia o corpo do irmão mais novo, morto durante um bombardeio, para que os ratos não o devorem. Isso até que se aproxima um desconhecido. Jürgen diz baixinho para ele:

“(…)‘meu irmão, ele está ali embaixo. Ali’. Jürgen apontou os muros desmoronados com a vareta. ‘Nossa casa foi bombardeada. De repente acabou a luz no porão. E ele também. Ficamos chamando depois. Ele era muito mais novo do que eu. Só quatro anos. Deve estar aqui ainda. Ele é mesmo bem mais novo que eu’. (…)”

O homem, sabiamente, responde ao menino: “Mas à noite os ratos dormem. À noite você pode ir tranquilo para casa. À noite eles sempre dormem. Já quando escurece”. E convida Jürgen a sair dali e ir com ele alimentar pequenos coelhos. Talvez até ter seu próprio coelho.”

+ Morte, uma aliada da vida bem vivida

Honrar os mortos

honrar mortos

Em quase todos os trabalhos de constelação familiar, observamos o mesmo movimento de Jürgen.  Uma pessoa não consegue prosperar, ser feliz em um relacionamento; ou se sente fraca, impotente, seja para vencer desafios, seja para vivenciar o prazer, porque “vela” por um ou mais mortos de seu sistema, isto é, permanece fiel ao destino infeliz deles. 

Esse tipo de amor cego, que impede a vida de seguir adiante em toda a sua plenitude, é um peso não só para quem está vivo, mas também para os antepassados.

O texto de Borchert talvez possa nos ensinar uma forma mais saudável de “cuidar” de nossos mortos. Basta darmos a eles um lugar em nosso coração para que os ratos (o esquecimento, a exclusão?) não os devorem. Com eles em nosso coração, e devidamente incluídos em nosso sistema familiar, seguimos em frente e tomamos o nosso destino nas mãos.

Então, talvez possamos mudar a frase. De: “por amor a você, eu também terei um destino difícil”. Para: “em homenagem a você, eu vou fazer algo bom da minha vida, vou honrar você na minha felicidade. Depois, eu também me vou.”

Breve meditação

Para vivenciar a inclusão saudável, do amor que cura, propomos uma meditação de Bert Hellinger, do livro Outro Jeito de Falar” (ed. Atman).

“Imaginem que lá estão deitados os mortos de sua família, inclusive aqueles que tiveram um destino difícil.

Como vocês estão e como eles estão quando vocês se lembram dele?

E como estão vocês e eles, se puderem ser esquecidos, finalmente?

Contudo, algumas vezes, eles podem ser esquecidos só depois de serem lembrados e olhados por nós.

Então, nós os liberamos para o esquecimento bem-aventurado [grifo nosso]. Vocês podem ainda examinar algo. Imaginem que estão mortos. Se forem lembrados, como vocês se sentem? Ou se forem esquecidos, como vocês se sentem? Onde está a paz mais profunda?”

Por Adriana Bernardino.